Com renovada alegria, vê-se a produção de interessantes e arrojados novos mecanismos na seara administrativa, fato este essencial para ressignificar os conceitos de indisponibilidade do interesse público e supremacia do interesse público sobre o interesse privado.
Não se duvida que ambos os temas destacados representam as pedras angulares do direito Administrativo, contudo, apresentam-se, muitas vezes, como verdadeiros óbices à tomada de decisão eficiente, quando alinhadas a um sistema punitivo disfuncional.
A aprovação do Projeto de Lei n° 4162, de 2019, conhecido como o Marco Regulatório do Saneamento, reavivou a esperança na concreta melhoria desse serviço público que goza de incrível obsolescência e precariedade em sua prestação, resultado este de práticas letárgicas.
Muitas são as razões que podem ser apontadas como causa para a essa precariedade do essencial serviços de saneamento, como a disfuncionalidade normativa, a ausência de segurança jurídica e ainda uso políticos dos agentes do setor.
As principais inovações trazidas pelo Marco Regulatório, a nosso sentir, buscam reduzir os chamados custos de transação, oriundos da desinformação e do tão famoso risco Brasil, permitindo que haja uma maior clareza no processo de tomada de decisão por parte do investidor.
Pode-se destacar algumas boas práticas regulatórias (i) na centralização dos comandos regulatórios e mandatórios na ANA, Agência Nacional de Águas; (ii) estabelecimento de metas audaciosas como o atendimento de 99% da população com água potável e 90% com tratamento de esgoto até 2033, (iii) participação da iniciativa privada na prestação de serviços de saneamento e (iv) prazo de um ano para licitações obrigatórias dos serviços.
Ainda que forma paralela, deve-se destacar a alvissareira aprovação do Decreto Federal n° 10.411/2020 que dispõe sobre a Análise de Impacto Regulatório e do cabedal normativo das Leis Federais, a Lei da Liberdade Econômica (13.874/2019) e da Lei das Agências Reguladoras (13.848/2019),
O saneamento, ainda que possua notável pujança econômica, deve ser compreendido sob a ótica de serviço público, assegurando-se de mecanismos que prevejam e concretizem a modicidade tarifária, a generalidade, a eficiência e a prestação de um serviço adequado.
Todos estes pontos, ainda que ressaltados no novo marco, já foram objeto de leis anteriores, como a reverenciada Lei Federal n°8.987/95, lei geral das concessões, e ainda a Lei Federal nº 13.460, de 26 de junho de 2017 que versa sobre a participação, proteção e defesa dos usuários dos serviços público.
Diante disto, ao que parece, os péssimos indicadores do saneamento não estão atrelados diretamente a existência ou não de lei, mas talvez a culturas administrativas enraizadas nos gestores públicos, e, principalmente, na insistência da Administração Pública de não seguir as regras de mercado.
Em regra, o serviço de saneamento é prestado por meio de um monopólio natural, isto é, a robustez de sua estrutura de prestação é tamanha que impede aos outros interessados que dupliquem aquele aparato de encanamentos, estações de tratamento e centrais, impossibilitando o exercício de escolha pelo consumidor, que ainda se vê compulsoriamente obrigado a aceitar aquele fornecedor, gerando por isso uma clientela cativa que desestimula as melhorias.
A partir dessa contextualização, é fundamental estabelecer robustos mecanismos pro competição, como o fomento e proteção à concorrência prévia por meio da licitação pública, a aplicação da Yardstick Regulation, mecanismo este capaz de mensurar e impor parâmetros de concorrência entre agentes que ocupem mercados relevantes distintos e a ainda a seriedade e previsibilidade da eventual caducidade por descumprimento do contrato.
De tudo que se apresenta neste cenário, restam duas certezas, (i) a ausência de saneamento mata, podendo ser indicada a experiência da desigualdade da mortalidade do coronavírus e de sua disseminação nas regiões favelizadas e desprovidas de saneamento (ii) precisa-se de uma urgente mudança na cultura do gestor público, o que se faz diariamente, mediante a implementação das boas práticas regulatórias, de segurança e estabilidade jurídica, de prevenção e combate à corrupção e de transparência.
Artigo publicado no JOTA em 30/07/2020